98. Vivo as vidas que não são minhas e não encontro nelas a evidência que existo. Horas passam, dias rolam impercetíveis a quem vive num cubículo escuro dentro da ficção. Movimento-me pelo território que apenas eu conheço, sem nunca chegar a um porto de abrigo.

97. Escrevo e escrevo. Porque escrevo? Quem são estas palavras? O que definem elas sobre a mão que as desenha? Existe de todo alguma verdade de mim neste texto que não compreendo? De quem é esta voz que sobre mim dita sem dizer palavra. Este tormento que me chama, que me prende nesta cela de papel.

96. Procuro o sentido no acervo de sensações que se acometem. Todas elas desaparecidas dentro das palavras e eu continuo a procurar, assaltado pelo desespero, nas camadas interiores do texto: Quem sou eu?

95. Lentamente, o tempo se perde na maré insurreta da escrita. As palavras jorram como feridas abertas e o sangue coagula em tromboses de poesia. Sofro porque nada faz sentido.

94. Passei tempo demais a escrever. Derramei a tinta como o sangue de que sou feito. A ponto de esmorecer exangue. Sinto-me hemorrágico. Tudo de mim está sobre este papel. No fundo, a cada palavra perco o sentido de ser. Em vez de ganhar, perco.

93. Se o movimento for lento demais a gota aumenta deixando uma pequena mancha encavalitada no torneado da letra. Se for rápido, a pequena esfera plana apenas sobre o papel, deixando somente uma vaga impressão de cor que se perde com o tempo.

92. Lembro-me da dor. Lembro-me da saudade. Lembro-me do dom da palavra. Letras, a tinta que escorre em borrão na folha de papel. Desce lentamente da caneta absorvida pela fibra do papel. O movimento da mão alonga-se, estende-se no tempo e a gota cai lentamente e tinge o papel mortiço deixando o testemunho de uma ideia.

91. Sinto o cheiro acre do propano a conquistar o espaço na casa. Sónia aninha-se em mim, tentando fazer amor outra vez. Pergunto como fazemos para encontrar a joana. Sónia responde que joana só existe na minha cabeça.

90. Na cozinha abre todos os bicos do fogão. E volta para perto de mim. Diz que está na hora de viver outra vez. Que temos de tirar aquela foto outra vez. Que está algo de errado com aquela fotografia e que temos de fazer o que está certo.

89. O miador está junto da janela, a ver o janeiro passar. Sónia sabe que ao abrir ou fechar as janelas em todo o estúdio pode deixar entrar algum espírito fantasma. Anda cerimoniosamente nua de um lado para o outro. Vestida de inocência, o seu corpo flutua sob a bruma de uma melodia de saudade.