Um grito surdo sobressalta-me o sono. Acordo suspendendo o peso sob os lençóis e na negritude da noite sinto que já não vejo. Vejo de facto, mas apenas a ausência de cor, uma ausência de sentido, um encolher dos cantos da casa que me assusta. É como se a escuridão tivesse peso, densidade, consciência, uma intenção de me sufocar, apertar-me o pescoço por miseraricórdia.
Obliquo, sentado, prescruto a proviniência do som. Procuro o sabor de algo que me seja familiar. Não reconheço o meu estado. Sinto que já não existo e que a tudo o que estendo a mão trespasso sem tocar o âmago do seu existir.
No entanto sinto uma qualquer presença perto de mim. Um odor áspero a morte. Uma névoa lugúbre a morte antiga. Uma morte de um passado que insiste em permanecer perto de mim. Julga-me.
Da janela surge o brilho de um amanhecer que desconheço, perdi algures as contas dos amanheceres que fingi ter perdido, que fugi da sua existência. Sinto os seus dedos de luz à minha procura, tacteam as paredes, tentam tocar-me. Encontram um corpo, um corpo que afinal não é o meu. Algo disforme, pendurado. Agora sim, vejo-o, ao fundo. Vertical, num canto longe de mim, aspergindo o quarto com a sua pestilência, banhando tudo de morte.
Um laço no pescoço, uma aflição que só o tempo desgasta, dilui-se, perde-se a nocção do propósito e pergunto-me em que fase da vida se começa a distingir entre o sonho e a realidade, entre o sonho e o pesadelo ou entre o pesadelo e a realidade.
Perco a razão desta aparição fastasmagórica que aqui permanece assombrando o caminhar do meu sono. O porquê de gritar sofrimentos não me deixando descansar. Talvez precise de ajuda. Algures no derradeiro desespero da pós-existência deseje algo de mim. Algo que só eu possa providênciar. Talvez retirá-lo da sua supensão eterna a que ele proprio se condenou. Dar-lhe um tipo de descanso ao corpo pois a alma nunca mais descansará.
E no frio que me enrege-la as escamas da pele reluto com o meu corpo para descer da cama. Sinto que já não possuo qualquer tipo de força. O meu corpo arrasta-se para superar o espesso liquído do tempo, uma agudeza enferma que me substitui a força de espirito, entoxica a alma. Talvez um receio, uma possibilidade remota à qual me recuso a aceitar.
Sigo o caminho na angustia de que talvez o meu esforço se torne num momento paliativo na decadência da alma que na mais profunda amargura se pendurou.
Terror. Uma dor constante que o oprimiu em vida, uma subita desistência de existir, uma agonia sofrida que destriu a frágil malha do pensamento e o tenha levado a este triste fim e por consequência atribiu à minha pessoa esta vil tarefa de o exorcizar da verticalidade distendida que o assombra e prende a este mundo.
E no momento em que lhe toco sinto de novo a familiaridade, a pele seca, inerte, um corpo sem sangue, distituido de fluidos, envenenado pelas próprias toxinas. Sinto uma ligação, leve, muito leve. Até a sua face disforme, disfigurada pelo terrivel momento da asfixia parece-me familiar.
E agora em que o tempo se distitui da sua capacidade de percorrer o espaço permaneço aqui, gelado, suprimindo o fôlego, olhando a minha pópria figura, um ser que em tempos fui e que não teve a coragem necessária de se salvar a si próprio.
Esta constatação submete-me a um novo tipo de tortura, como se o tecido da minha alma tivesse sendo lentamente rasgado ao meio, separando em cerce todos os segmentos do meu corpo. Condenado ao terror de reviver uma e outra vez este momento de agonia. Sinto que não tenho hipótese. Não irei jamais encontrar a salvação do crime que cometi.
A agonia invade os meus sentidos, tento chegar à corda, a dor segue por todos os caminhos, pelos meridianos mais sensiveis do meu corpo, tudo grita de dor. Estou a perder a capacidade de raciocinar, sinto a derrocada dos constituintes da realidade. Tenho de conseguir que isto acabe. Tenho de deixar de sentir, de pensar. Tenho de fugir a esta existência sem vida. Tenho de morrer, de voltar a morrer, tenho de morrer uma e outra vez até que por fim morra de facto.
Unsurgido na loucura, dissolvido na agonia do desespero subo na cadeira, visto a gravata de corda e num derradeiro gesto de clemência suspendo-me com um grito chamando a redenção.